sexta-feira, 19 de maio de 2006

Ecos da obra

A histeria Da Vinci chegou ao paroxismo da literatura comparada para denegrir o último romance de Dan Brown.
Na realidade, só em raras circunstâncias se consegue comparar dois autores ou duas obras de autores diferentes. Consigo, todavia, comparar estilos literários apenas quando eles se aproximam, uma vez que o estilo de um escritor não se mede por uma escala valorativa, nem se materializa numa linearidade perfeitamente mensurável por um imaginável estilómetro.
Enquanto leitor compulsivo e ávido de novas descobertas no campo da literatura, dou por mim a ler obras menores, de qualidade literária duvidosa, que venturosamente me permitem calibrar o crivo numa sequência, tão ingénita como a experiência humana, da tentativa e do erro. Todavia, esse processo contínuo de afinação, apesar de ser um corolário de uma certa abertura de espírito perante a novidade – busca incessante de conhecimentos como meio de aperfeiçoamento da alma, entendida como procedimento de aprendizagem para a necessária e obrigatória adaptação à minha envolvente –, é manifestamente subjectivo que, no entanto, contribui para a diversidade de um todo social que se quer heterogéneo, favorecendo o robustecimento de uma unidade espectral de todas as formas de pensar, sentir e agir, como um singelo pixel contribui de forma indelével, porém imprescindível, para o quadro final.
É, portanto, a unidade na diversidade que enriquece as condição e natureza humanas. Proverbiando, o que seria do amarelo…

A propósito dessa diversidade e do saudável relativismo na apreciação de uma obra literária, ocorreu um episódio interessante e enriquecedor neste mesmo blogue.
Discorria eu sofre Kazuo Ishiguro – mais um dos meus escritores de eleição – e sobre um dos seus livros, que integra a categoria dos romances da minha vida, «Nunca Me Deixes», quando me excitei e fiz, ao correr da pena – ou para ser moderno, ao deslizar do cursor – uma superficial comparação do seu estilo com o do escritor norte-americano Michael Cunningham. O Sérgio Lavos, do blogue Auto-Retrato, discordou – e muito bem – desta minha comparação, referindo-se à menos-valia de Cunningham em relação ao estilo literário de Ishiguro. E eu digo: viva à liberdade de expressão e à diversidade de gostos no campo da literatura! Eu discordo da avaliação de Cunningham feita pelo Sérgio, porém reconheço igual validade à sua opinião tal como se fosse a minha.
Serve isto para referir que me parece risível a tentação comparativa, declaradamente redutora, entre Umberto Eco e Dan Brown. O único ponto em comum entre os dois escritores reside no facto de ambos escreverem romances históricos. Sob ponto de vista do estilo narrativo, da investigação histórica e até do menor ou maior apelo à hermenêutica, ambos são completamente distintos, não são sucedâneos, nem sequer complementares. Eco é hermético, irónico, um jogador de palavras, um semiólogo. Brown é linear, sem atavios, de linguagem fácil, lança um tema central polémico e aparentemente verosímil para que a discussão pública se transforme numa polémica global para vender, mas também para divertir e transformar a literatura numa arte prazenteira – diferente da habitual conotação do conceito de “light”.
Deste modo, ao observar aqueles que professam a leitura de obras como «O Nome da Rosa» e/ou «O Pêndulo de Foucault» em detrimento de «O Código Da Vinci», porque melhores, provindas de um verdadeiro erudito, sem, por exemplo, entrechos apócrifos, só posso concluir de que se trata de um exercício puramente demagógico e consciente ou incoscientemente enganador.
Como já tive a oportunidade de afirmar, «O Pêndulo de Foucault» é a obra-prima dos romances ditos históricos – para se estabelecer uma inteligível catalogação – que nada tem a ver com as obras de Dan Brown. O Pêndulo só se assemelha ao Código porque parte da acção decorre em Paris, a partir daí nada mais!
O Pêndulo trata-se de uma elucubração sobre as correntes esotéricas e a da sua influência na condução dos destinos do mundo. É uma brilhante crítica mordaz às teorias da conspiração e ao poder que as seitas denominadas por ocultistas, obscuras, secretas e, com já ouvi, discretas putativamente usufruem.
A própria estrutura do romance baseia-se nos 32 Caminhos da Sabedoria ou na Árvore da Vida (que aparece representada logo no início do livro) da Cabala, compartimentada pelos 10 capítulos como os 10 Sephiroth (ver mais informação
aqui).

Valha-nos Deus ou algo ou alguém por Ele! Um romance é uma obra de ficção!

Para terminar deixo aqui a epígrafe da última Sephira (Sephiroth é o plural de Sephira), Malkut – Reino –, correspondente ao 10.º capítulo da obra de Eco:

«Mas o que parece ser de deplorar, é que vejo alguns insensatos e estultos idólatras, os quais… imitam a excelência do culto do Egipto; e que procuram a divindade, de que não têm razão alguma, nos excrementos de coisas mortas e inanimadas; que com tudo isso troçam não somente desses divinos e avisados cultores, mas também de nós… e o que é pior, com isto triunfam, vendo os seus loucos rituais em muita reputação… – Que não te dê isto enfado ó Momo, disse Ísis, porque os fados ordenaram a vicissitude das trevas e da luz. – Mas o mal, respondeu Momo, é que eles tomam como certo que estão na luz.»
Giordano Bruno, Spaccio della bestia trionfante. In Umberto Eco, O Pêndulo de Foucault, Difel.

Nota: no próximo texto deste blogue, assim que os afazeres esmorecerem, publicarei uma das passagens mais deliciosas do romance de Eco: uma conversa entre um quase crente – o meu personagem preferido – Casaubon e a sua céptica mulher – que se parece com a minha –, Lia.

2 comentários:

Anónimo disse...

Bem lembrado aqui, o romance de Eco, também o meu preferido dele. Há um mundo a separar o Código da Vinci de O Pêndulo de Foucault, e repare que eu li o livro de Dan Brown e achei que tem os seus méritos, isto é, penso que consegue concretizar tudo aquilo que o autor se propunha: entretém, tem ritmo, tem um enredo cativante, consegue tocar (mesmo que ao de leve) assuntos que podem interessar a uma audiência alargada. No fundo, um excelente produto comercial. Mas, como obra literária, pouco mais do que uma boa jogada de marketing. Longe do esforço de Eco, a todos os níveis, desde o rigor na investigação, até ao trabalho sobre a linguagem, passando por aquilo que marca qualquer leitor: a gravidade. Saímos daquele romance de Eco mais ricos; Dan Brown consegue divertir durante algum tempo, mas quando aquilo acaba fica-se com aquela sensação de "então, é só isto?"

Anónimo disse...

Muito bom post... Todavia, o meu livro preferido do Eco é "A Ilha do Dia Antes". Abraço.