quinta-feira, 17 de agosto de 2006

Anel de Areia [Actualizado]

A minha experiência espanhola tem-me sugerido uma proposição que infelizmente se vai transformando num triste adágio na, intrinsecamente humana, habilidade comparativa. Os escaparates das livrarias madrilenas – e não só – são, por norma, mais apelativos que os ostentados pelas livrarias portuguesas, para já nem falar da esmerada catalogação – um livro fora do sítio é um livro perdido!
Por outro lado, as edições espanholas investem no verdadeiro marketing do frontispício. As capas são, em geral, mais apelativas e informativas – trata-se apenas de uma constatação empírica.
Pela capa não o comprava. Pela frase apensa ao título – prosaico, diga-se – e à autora do romance, “Vencedor do Booker Prize”, adquiri-o, desconfiado, no início deste ano.
Esta combinação capa/título escolhida pelo editor nacional poderá afastar o menos flexível dos leitores, mesmo que compulsivo, e é um facto que, depois da compra, ele permaneceu na minha estante até anteontem.
Falo do romance de 1987 da escritora inglesa de origem egípcia Penelope Lively «Anel de Areia» vencedor do Booker Prize nesse ano, derrotando na final nomes como Iris Murdoch e Peter Ackroyd, sendo o júri presidido pela consagrada escritora de O Farol, P.D. James.
Anel de Areia conta a história de Claudia Hampton que se propõe contar a História do mundo circunstanciada pela sua história de vida. É a biografia da sua existência marcada pelos relatos da II Guerra Mundial no Egipto como repórter de guerra, sob o assombro e o temor do temível estratega Erwin Rommel – a Raposa do Deserto – e da Deutsche Afrikakorps.
É o terrífico significado do anel de areia – areia que deveria ser azul mas exibe a sua monótona cor amarelada – que molda a narrativa, redigida num asséptico quarto de hospital enquanto o tempo sobra à espera da morte anunciada.
Claudia relata sete décadas de uma vida marcada indelevelmente por um breve instante que lhe bloqueia o caminho da encruzilhada que lhe permitiria a mudança. A dor, sempre a dor dos momentos perdidos, da vida pressupostamente não vivida e do pungente e devastador exercício do condicional: se…
Penelope Lively, hoje com 73 anos, foi uma descoberta gratificante que só peca por tardia. Apesar de ser autora de uma extensíssima obra – 18 romances, 3 ensaios e 27 obras para crianças – somente este romance está traduzido para a língua de Camões.
A ler.

[Adenda]
Por razões que o intricado processo de memória poderia explicar, esqueci-me de aqui deixar um excerto de um diálogo (pp. 110-111) entre Claudia e Tom – este último é militar das forças aliadas nos desertos do Egipto, que por razão de não estragar a surpresa do enredo, mais não revelarei:
«– Vamos ganhar a guerra? – pergunta Claudia.
– Sim. Presumo que sim. Não por causa da intervenção divina ou porque a justiça triunfará mas porque no último recurso tivemos muito sucesso. As guerras pouco têm a ver com justiça. Ou valor ou sacrifício ou as outras tradicionalmente associadas a elas. É uma coisa que ainda não percebi muito bem. A guerra tem sido muito deturpada, acredite. Teve uma vergonhosa boa publicidade. Espero que você e os seus amigos estejam a fazer alguma coisa para o melhorar.
– Também espero – diz Claudia.
– Estou a pensar mais nos cronistas do que nos repórteres. Presumo que não se veja como cronista. Os cronistas, como não viram de perto as coisas, concentram-se na justiça e nos valores e em tudo isso. E nas estatísticas. Quando nos vemos numa estatística as coisas parecem diferentes.
»

Referência bibliográfica completa
Penelope Lively, Anel de Areia, Civilização, 1.ª edição, Fevereiro de 2006, 215 pp. [Tradução de Marlene Campos] (Moon Tiger, 1987)

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