quarta-feira, 6 de setembro de 2006

Uma teoria de Deus e o suicídio

Para além de um bom começo e de uma ideia global sinceramente positiva que nos resta após a leitura de uma notável obra de ficção, há diálogos que jamais nos sairão deste intrincado processo de afixação de coisas que nos assombram na insondável memória.
O pecado do suicídio, sobre o qual não há remissão possível – cujos perpetradores habitam o Sétimo Círculo de O Inferno de Dante* –, explicado por Fiodor Mikhailovich (Dostoievski) à pequena Matriosha em O Mestre de Petersburgo por J.M. Coetzee (pp. 74-75):

«
– Achas que ele se matou?
– A mãe diz que ele se matou.
– Ninguém se mata, Matriosha. Uma pessoa pode pôr a vida em perigo, mas não se pode verdadeiramente matar. É mais provável que o Pavel se tenha colocado em risco, para ver se Deus o amava o suficiente para o salvar. Fez uma pergunta a Deus: Salvar-me-ás?; e Deus deu-lhe uma resposta. Deus disse: Não. Deus disse: Morre.
– Deus matou-o?
– Deus disse que não. Deus podia ter dito que sim: Sim, salvar-te-ei. Mas preferiu dizer que não.
– Porquê? – sussurra ela.
– Ele disse a Deus: Se me amas, salva-me. Se estás aí, salva-me. Mas só houve silêncio. Depois ele disse: Eu sei que estás aí, sei que me ouvirás. Aposto a minha vida em como me salvarás. E mesmo assim Deus não disse nada. Depois ele disse: Por muito que te mantenhas calado, sei que me ouves. Vou fazer a minha aposta… agora! E fez a sua aposta. E Deus não apareceu. Deus não interveio.
– Porquê? – sussurra ela de novo.
Ele fez um sorriso feio, enviesado, barbudo.
– Quem sabe? Talvez Deus não goste de ser tentado. Talvez o princípio de que não deve ser tentado seja mais importante para ele do que a vida de uma criança. Ou talvez a razão seja simplesmente que Deus não ouve lá muito bem. Deus nesta altura já deve ser muito velho, tão velho como o mundo ou até mais. Talvez seja duro de ouvido e também tenha a vista fraca, como qualquer velho.
»

*Círculo Sétimo do Inferno, em A Divina Comédia de Dante Alighieri, traduzido e anotado por Vasco Graça Moura (Bertrand, 5.ª edição, Dezembro de 2000, Canto XIII: 103-105, pág. 133):
«
Iremos, como os mais, pela recolha
dos despojos, mas não para vesti-los;
que não é justo ter o que se tolha.
»
(Nota interpretativa por VGM: No dia do Juízo Final, iremos buscar os nossos corpos, como todos os outros, mas não para os recuperarmos e torturarmos a vesti-los, por não ser justo com o que a nós próprios tirámos.)

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