quinta-feira, 7 de junho de 2007

Devastação

«Os dias passavam, vagarosos, sem que ninguém os contasse, os assinalasse num calendário. Lá longe, ao longo da interestadual, enormes filas de carros calcinados e cobertos de ferrugem. O metal despido das jantes mergulhado numa pasta dura e cinzenta de borracha derretida, em anéis enegrecidos de arame. Os cadáveres incinerados, mirrados até ao tamanho de crianças e apoiados nas molas nuas dos assentos. Milhares de sonhos sepultados naqueles corações reduzidos a lascas de pedra. Eles continuaram a caminhar. Palmilhavam o mundo sem vida como ratinhos numa roda. De noite, silêncio de morte e trevas sepulcrais. Tanto frio.» (pág. 179)
Trevas. Suponhamos a Terra definitiva e perenemente coberta de nuvens negras, fuliginosas, que raramente deixam entrever os raios do astro-rei que outrora fora a fonte criadora de vida. A superfície da América é apenas um deserto cruzado por uma intricada rede de estradas de asfalto negro derretido, por onde deambulam seres humanos em busca de alimento, revirando os despojos de uma devastação de chamas, de árvores queimadas, cidades inteiras destruídas, onde já nem se escuta o trinado dos pássaros que cruzavam os céus. O Homem sozinho com ele mesmo, curiosamente o único ser que remanesceu à barbárie por ele ocasionada; o Homem e a sua desmesurada inteligência, desviada apenas para o objectivo último de sobreviver numa paisagem hostil que ele próprio criou no seu afã de conquista, de poder, de dominar a indomável Natureza.

Pai e filho caminham sós por essa imensa estrada, unindo-os uma relação de amor incondicional, resquícios dos afectos de um tempo que já passou. Pequenos nadas que se consolidaram numa liga indestrutível perante a miséria.
Pai e filho caminham para Leste, em direcção ao mar. Talvez a única força viva da Natureza que, pela distância – na memória do pai – ou pelo desconhecimento que não seja através de uma memória secundária – no caso do filho –, simboliza todo o fulgor e o fascínio que necessariamente o simples acto de viver, toda uma existência, requer para lhe atribuir um significado, um propósito, um objectivo cuja génese incognoscível – Deus? – poderá encerrar algo de absolutamente aterrador, mas que decerto conduz à libertação... à luz.
Pela estrada deambulam pessoas em busca de alimento, quando não pertencem e nem se encontram organizados em comunas fortemente hostis ao contacto com o exterior despedaçado. No pai subsiste a memória de um espaço de luz e toda a aprendizagem de um processo que conduziu o planeta ao apocalipse. Ao filho resta-lhe a obediência cega à voz da experiência do seu velho companheiro de caminhada, e um coração puro, não contaminado, desconhecedor das atrocidades praticadas e, principalmente, da razão de ser para aquele cenário de autodestruição: «Está bem», simboliza a tal obediência que é simultaneamente o epítome de um sentimento arrebatador que extravasa toda a degradação; e, enfim, a caridade que, como dizia o Profeta, recolherá os seus frutos num tempo que há-de vir.

Cormac McCarthy conquistou com este livro o prémio Pulitzer 2007 para a melhor obra de ficção literária. Nas cerca de 190 páginas do romance, que se lêem de um só fôlego, o escritor norte-americano faz jus às atribuídas solidez e integridade narrativas, especialmente difícil numa obra de carácter distópico.
Com alguma crueza em determinados relatos – vide a descrição, tão discutida pela crítica, do bebé canibalizado – e, por outro lado, sem haver deixado algum do barroquismo que caracteriza a sua bibliografia ficcional activa, esta é, no meu entender a sua melhor obra e, seguramente um dos romances do ano editorial português, uma vez mais com a chancela de uma das minhas editoras preferidas, a
Relógio D’Água.

Classificação: ***** (Muito Bom)

Referência bibliográfica
Cormac McCarthy, A Estrada. Lisboa: Relógio D’Água, 1.ª edição, Março de 2007, 187 pp. (tradução de Paulo Faria; obra original: The Road, 2006).

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