sexta-feira, 15 de junho de 2007

Zelo de um diletante

3.º Passo: A vontade e a vida aos cuidados da Providência
(seguindo os passos até ao São João)



Bullshit! [merda de touro; trad. AMC]

Até seria um bom tema que decerto traria para este espaço uma boa discussão metafísica: a vontade individual como determinante principal na prossecução da tarefa, demasiada e ditosamente humana, de cartografia do nosso destino; e depois, tendo de condescender e afirmar que, seguindo Schopenhauer, a própria vontade é por vezes determinada por aquilo que somos. E isso não significa, porém, uma adesão total ao pessimismo filosófico. A perpetuação do sofrimento, como resultado das nossas mais duras e pungentes experiências e da observação dos males que assolam o mundo, deverá ter um fim ou, pelo menos, um agente paliativo, para que a existência, apesar da sua aspereza, não se reproduza numa sucessão imparável de actos eminentemente masoquistas.
Foi este o princípio que me trouxe à blogosfera.
Schopenhauer via a arte como redenção, uma suspensão de juízo que nos afasta da angústia do desejo. Freud entendia-a como um desvio dos nossos impulsos sexuais anteriormente reverberados e recalcados pelo superego.
A arte consubstanciada nos livros. Um retrato da angústia existencial que alguém, pelo raro talento de disfarce da eterna insatisfação, nos quis transmitir. E deste lado, do lado de um simples receptor que encobre a desilusão por possível erro, ou mero ruído, no problemático desenvolvimento ontogenético, na afirmação do seu eu, remanesce, por vezes, um desejo de desassombrar a alma dessa terrível e dolorosa constrição através da escrita.
Encadeamento: ler para depois escrever para ser lido. Eis a blogosfera e com ela esse desanuviamento – uma descarga, em certos momentos, puramente emocional.

Mas como dizia um poema de um cantautor inglês que há pouco tempo consegui tra(duz)ir, mesmo aquilo que é bom, um dia, mais ou menos longínquo, tem de terminar. Por cansaço ou por falta de tempo, por… tudo, quando sentimos o nó a apertar. E, na maioria das vezes, a exigência que apomos a algo, que, embora sendo tarefa amadora, nos enche plenamente as medidas, transforma-se, de súbito, no seu próprio carrasco.

Bem, para concluir, acabei por não escrever tudo aquilo que aqui queria ter dito.
O mote era a blogosfera e com ela a desmultiplicação de personalidades que, anteriormente, desconhecíamos ou julgáramos entregues ao letargo da inconsciência, após uma breve epifania. E, seguindo o tema, introduziria uma das inúmeras citações possíveis do magistral O Duplo do gigante Fiodor Dostoievski que, entrementes, incluiria algo do género:

«Como posso, por fim, descrever-vos esses cavalheiros brilhantes e graduados, divertidos e sisudos, jovens e idosos, alegres e decentemente nebulosos, que, nos intervalos entre as danças, numa sala afastada, fumavam os seus cachimbos, e os que não fumavam cachimbo…» (Dostoievski, O Duplo, Editorial Presença, 1.ª edição, Julho de 2003, pág. 34; tradução de Nina Guerra e Filipe Guerra).

Era para falar desses seres inefáveis que inundam o nosso quotidiano. Mas, de repente, entre a página 104 e 121 avistei um maço de folhas A4 dobradas a meio que – lembrei-me! – quando o lera, num manifesto gesto de leitor zeloso e de miserável consumidor para reclamar os seus direitos, imprimira da versão inglesa disponível em texto completo na internet. Ironia: transformei O Duplo num romance bilingue. As páginas soltas e por mim elaboradas abarcam o final do capítulo 10 e o início do 11, porque a Editora fez-me o favor de vender um livro que, ao invés de ter as 150 páginas que constam do romance traduzido, surgiu nos escaparates com 134 (da 1 à 104 e da 121 à 150).
E os editores e revisores estariam a dormir quando o livro chegou da tipografia?
Numa altura em que se discute os críticos que recenseiam livros sem os haverem lido, e quando se fala da manifesta falta de qualidade de algumas editoras, no que diz respeito aos conteúdos, ao grafismo, à qualidade do papel, à deficiente tradução, etc., este episódio serviu para demonstrar – sem qualquer espécie de presunção ou sombra de auto-elogio – que, em Portugal, o zelo está apenas do lado do leitor…

Eximir de responsabilidades pelos responsáveis e inverter os papéis – como ultimamente o ónus da prova na caça ao pobre e pequeno contribuinte –, eis uma das mais incrustadas características da minha (nossa) ditosa pátria!

2 comentários:

Anónimo disse...

Quanto mais leio o teu In Absentia, mas me sinto em completa sintonia com certos teus, não todos, pontos de vista, assim como com o teu modo de excurso porventura esfíngico e transparente. A vida editorial está aqui muito bem radiografada, vigiada, caracterizada.

Discorres de um modo que acaba por enredar e fundir a realidade, o tempo presente português, com a essência dos livros por ti tra(du)(z)ídos.

O teu último comentário, então, subscrevo-o de tal modo inteiramente que me pareceu a minha própria carne de pobre e pequeno contribuinte que aí escrevia e desabafava sub alteris virtualis species.

Hoje esta tua página estará linkada na minha! E muito justificadamente.

Anónimo disse...

Obrigado, caro Joshua.
Um pouco desconcertado com o elogio, escasseiam-me as palavras...