sexta-feira, 22 de fevereiro de 2008

Crianças Queimadas… coitadinhas!

Confesso. Tenho uma notável aversão a compilações temáticas de quaisquer estilo e natureza, principalmente se aquelas se referem aos meus dilectos meios de expressão artística. E esta minha urticária compilatória converteu-se, de forma implícita, numa regra de cumprimento estrito, cuja derrogação induz, de forma severa, a uma manifestação de dor estética, sublimada por terríveis afecções psicossomáticas, em que a tal urticária intelectual ou dor espiritual se materializa em compulsão pruriginosa. E se essa terrível enfermidade se agudiza especialmente sempre que algo atinge a minha veia melómana – curiosamente, antes de o som chegar aos meus ouvidos sensíveis, o simples avistamento dos frontispícios coloridos pós-modernos da, por exemplo, ovnilógica Vidisco (Anual Tuning Mix, Dance Power 15 ou o imperdível Kizomba All Stars) é o suficiente para o surgimento do primeiro sintoma.
Bom, retomando, dizia eu que se é na música que a minha colectaneofobia se exterioriza com especial pungência, isso não implica que a literatura – a forma de arte que me assoberba – não escape como se fosse a excepção à regra. Não falo, é claro, das antologias de novelas, contos, poemas, micronarrativas, ensaios ou epigramas de um só autor, que tem como principal mérito a reunião numa só obra de um conjunto de escritos que de uma ou de outra forma correriam o sério risco de desaparecer no intrincado dos corredores hexagonais da infinita Biblioteca. No entanto respondo com algum menosprezo, ou com uma indiferença glacial, ao apelo ciciado desses livrecos que, através da exploração da minha famélica carteira, procuram em total desespero um novo lugar de repouso, talvez o paraíso, diferente daquele altivo, luzente e efémero espaço que ocupam no escaparate de uma livraria carregada de companheiros de auto-ajuda e dos que ostentam uma miríade de posições acrobaticamente sexuais, um triste purgatório – e com que rapidez se dá, hoje em dia, essa transitoriedade – normalmente marcados à nascença pelo pó e o bafio dos armazéns dos grandes livreiros, o inferno – dificilmente de lá regressam, a não ser que um iluminado arcanjo se recorde que o mercado pagaria um bom preço por alguns desses exemplares desaparecidos.

Afastei-me da questão central (já ouço a voz de Pacheco Pereira cantarolando em tom de meio falsete, com hiponasalação do “a” com til, «mas essa não é a questão essencial!»)

Ponto de ordem: As colectâneas literárias com histórias repescadas de vários autores irritam-me pelo baixíssimo rácio do número páginas aproveitáveis sobre o seu número total de páginas no livro. A maioria das histórias é descartável e serve para fazer número, contribuindo, com a sua aparente benignidade para a exercitação do intelecto, para o desbastamento da selva amazónica (ou do Pinhal de Leiria, ou então, dos sobreiros da Portucale, talvez financiadas pelo Jacinto Leite Capelo Rêgo).
Embora, mesmo nesta categoria encontre algumas felizes excepções. Recordo-me por exemplo da série Ficções, da Editorial Caminho, superiormente dirigida pela escritora Luísa Costa Gomes, que engenhosamente consegue reunir num mesmo volume histórias de nomes como Nabokov, Cortázar, Lispector, Cheever, Updike, Hemingway, Flannery O’Connor ou Tchekhov (cf. Ficções de férias).
Quem colige seus males espanta… Adiante, que compila (ou sem) parte sempre de um critério tão subjectivo de selecção que dificilmente conseguirá agradar um conjunto razoavelmente numeroso de leitores. Critério esse cuja explicação nos é, normalmente, ensaiada num prefácio cheio de justificativas.

Eis um exemplo:
A editora Bico de Pena publicou recentemente uma antologia de contos intitulada Geração Queimada da América, sob a putativa organização (ou edição) da jovem e celebrizada escritora britânica, agora residente nos Estados Unidos, Zadie Smith (n. 1975).
Em primeiro lugar, Smith apropria-se da compilação ao trazê-la ao Novo Mundo, de onde partiram os textos dispersos, embora no corpo do prefácio consiga explicar que esta lhe foi apresentada numa noite de borracheira em Mântua, Itália. A menina-prodígio, que agora anda a morder a mão de quem lhe deu de comer (cf. Ípsilon de hoje, 22/02/2008), foi contactada durante um festival literário em que participou como oradora por um casal de italianos, Marco Cassini e Martina Testa, que são em simultâneo amantes da literatura norte-americana e editores de livros, dirigindo a pequena editora romana minimum fax – visite-se a página na internet e atente-se no naipe de autores publicados por esta editora, dita amadora, desde a sua fundação em 1993, e agora compare-se com as reivindicativas pequenas editoras nacionais.
Depois, no que respeita à forma do livro, a “introdução” tem em apenso um aviso que, das duas uma, ou a autora desconhece a palavra e a função de “posfácio”, ou então, o dito aviso pertence ao grupo das tais chalaças muito jovens, frescas, criativas e irreverentes que sói colorir uma excitada e floribeleira geração de autores: «(Como é o tipo de introdução que faz extensas referências aos contos a seguir apresentados, deve ser lida no fim)» (pág. 11).
A tal introdução que pretendia ser posfácio, alonga-se por onze páginas, onde Zadie Smith procura, numa escrita cool, explicar o fio condutor dos textos agrupados no dito livro, associando-os à obra e à idiossincrasia de cada um dos autores. Mas, desde logo, comete um erro capital; qualquer leitor, por mais desatento que seja ou possa estar ao ler o textinho coquete, reparará que Smith, com uma vénia reverencial em forma de caracteres destaca David Foster Wallace que apenas integra a compilação com um conto de entre os 19 que completam o livro. Smith compara, justamente ou não – infelizmente li pouquíssimos textos, e em avulso, da sua obra, para aferir da verdade da afirmação, e note-se que, à excepção deste conto, não há qualquer texto de DFW traduzido para português de Portugal (se houver, por favor comentar na respectiva caixa) –, como dizia, Zadie Smith, supostamente sob o efeito de uma substância que estimule o name-dropping, compara DFW a Pynchon, Gaddis, Rushdie, John Barth, Bathelme, DeLillo e, até, a Nabokov, citando-o completamente a despropósito pelo «riso que emerge da escuridão» (pág. 12) – teria de ser mais bem explicado, menina; não basta recorrer ao título de uma obra e… aqui vai disto; ou então, num passe de mágica como a montanha de Mann, e por aí fora).
Em boa verdade, o conto de David Foster Wallace, “Encarnação de uma geração queimada”, é o único que roça o brilhantismo de entre todos os que compõem a antologia. É negro, angustiante, sucinto; parece escrito de um só fôlego, como uma emanação da alma, que o aguentou durante 3 páginas sublimes.
Dos restantes 18, saliento o engenhoso e tão comparável à frivolidade da vida das famílias contemporâneas “JÁ SEI FALAR!™” de George Saunders; o belo e descoroçoante “Timesharing” do excelente Jeffrey Eugenides; o inteligentemente bem escrito “Faith ou Conselhos para uma jovem que queira ter sucesso”, retrato de uma jovem americana obesa e dos constrangimentos e determinações comportamentais de uma sociedade leviana e desapiedada, escrito por Amanda Davis, tragicamente desaparecida aos 32 anos (14 de Março de 2003) num acidente de avião, a quem a antologia é dedicada; e o extravagante e original “Uma boneca verdadeira” da escritora A. M. Homes.
E fiquemo-nos por aqui. Os restantes 14 contos deixar-me-iam menos pobre se a antologia pudesse ser vendida à peça (onde se inclui o conto pobrezinho, a tentar dar para o imaginoso-piadético da jovem e incensada promessa Jonathan Safran Foer (n. 1977).

Por Foster Wallace, Eugenides, Homes, Saunders e Amanda Davis, embora puxados para o lamaçal literário (sem intenção) por Zadie Smith:

Classificação: *** (A Ler)

Referência bibliográfica:
Zadie Smith
(org.), Geração Queimada da América. Cascais: Bico de Pena, 1.ª edição, Fevereiro de 2008, 253 pp. (tradução de Tânia Ganho; obra original: The Burned Children of America, 2003).

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