sexta-feira, 15 de fevereiro de 2008

Gigantes

Daniel Day-Lewis em Haverá Sangue (P.T. Anderson)
Alertado, sugestionado, é certo. Porém, a minha memória, que aqui e ali vai dando sinais de fraqueza, não consegue, por muito que se excite, fazer estremecer uma convicção hoje firmemente formada: o que Daniel Day-Lewis fez com Daniel Plainview em Haverá Sangue (There Will Be Blood, 2007) de Paul Thomas Anderson é exemplarmente inalcançável; é inspiração sem esforço, genialidade inata; é a arte da representação cinematográfica levada ao paroxismo da perfeição.
Faço o tal esforço de memória, elaboro uma listagem rápida, recorro à minha videoteca, dou início a uma pequena pesquisa às bases de dados cinematográficas existentes no ciberespaço, mas não, não encontro par – nos últimos vinte anos, talvez Anthony Hopkins com o seu Hannibal Lecter em O Silêncio dos Inocentes (The Silence of the Lambs, 1991) de Jonathan Demme, embora aqui a própria excentricidade do personagem haja contribuído, ao arrepio da aparência de dificuldade, para a singularidade do desempenho.

P.T. Anderson é, uma vez mais, magistral. Sem grandes malabarismos de realização e truques de pirotecnia típicos de um género em rápida proliferação, um impostor aspirante a cineasta de culto – cabe ao público criar o mito, que se sustenta pelas integridade e coerência artísticas do sujeito venerado –, conta-nos uma parábola negra, bárbara e intemporal, que, contudo, assombra pela sua conformação à realidade contemporânea.
Sem se tornar panfletário (à laia de Clooney, Redford e Penn) ou messiânico (à boa maneira de Iñárritu), Anderson consegue abordar em tom de fábula o actual revigoramento do fundamentalismo religioso, por um lado, e a cupidez e o materialismo desenfreados, por outro, que vão abrindo brechas irreparáveis num dos pilares fundamentais da natureza humana, essa, a sua condição, de um ser eminentemente gregário: a coexistência pacífica e simbiótica entre povos, raças e culturas (a impossibilidade de).
Petróleo… o indisfarçável e ubíquo protagonista. O espectro que paira por sobre as cabeças celeradas dos urdidores da trama internacional.
Anderson partiu de Oil!, romance escrito em 1927 pelo famoso idealista e autor norte-americano Upton Sinclair (1878-1968). Criou personagens próprios, alterou o aparente centro da intriga (conflito entre pai conservador e filho socialista na versão de Sinclair), mas o leitmotiv está lá, inalterado, a máscara de uma história que se recria numa infinitude de cenários, numa multiplicidade de atitudes, gestos e palavras. E o que Anderson tem de mais fabuloso, demonstrado, por exemplo, de forma irrepreensível no maravilhoso Magnólia (Magnolia, 1999), é a sua destreza plástica no uso, em filme, do tom nabokoviano: a paródia, a comédia humana, a ficção como mera representação de uma realidade grotesca e risível.
E o que dizer da cena final?…

Comparar esta obra-prima com a beleza sensaborona e trapalhona de Expiação – eu sei, estou a ser falacioso, mas os prémios máximos do cinema mundial estão aí e não me consta que ambos se digladiem em diferentes categorias – é como beber Vinho do Porto feito na Austrália tendo um Quinta do Noval à mão, já servido em cálice desenhado pelo Siza em bandeja de prata. Wright abastardou a obra de McEwan, Anderson pegou na matéria-prima, seleccionou-a, deu-lhe benefício e criou um produto final com corpo, forma e alma.

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