sábado, 5 de abril de 2008

1,... [com promessa]

V

O rapaz e a mãe ficaram a olhar para a carrinha até aquela desaparecer ao dobrar da esquina. No interior da casa reinava de novo um silêncio de morte. Ele já não se tinha de preocupar com o Rover, ter de verificar se ele estava a fazer algo aos tapetes, ou a morder os móveis, ou até verificar se ele tinha água suficiente ou algo que comer. Rover era a primeira coisa com que se costumava preocupar todos os dias quando regressava da escola e quando a ela voltava de manhã; andara sempre preocupado que o cão pudesse fazer alguma coisa que desagradasse o seu pai e a sua mãe. Agora toda essa ansiedade acabou e, com ela, o prazer, e a casa estava silenciosa.

Ele regressou à mesa da cozinha e tentou pensar em algo que pudesse desenhar. Um jornal estava pousado numa das cadeiras, ele abriu-o e deparou-se com um anúncio a meias da Saks que mostrava uma mulher que envergava um fino vestido, aberto para exibir a perna. Ele começou a desenhá-lo e voltou a pensar em Lucille. Será que poderia ligar-lhe, interrogava-se, e fazer aquilo que haviam feito da última vez? Apesar de ela, com certeza, poder vir a perguntar pelo Rover e não tinha alternativa senão mentir-lhe. Ele recordou-se da forma como ela afagara o Rover nos seus braços, até chegara a beijar-lhe o nariz. Ela amava o cachorrinho. Como é que ele lhe poderia contar que já não o tinha? Só de estar sentado a pensar nela, sentia-o a entesar como um pau de vassoura, e de súbito, perguntou-se, e se lhe telefonasse a dizer que a família estava a pensar num segundo cão para fazer companhia ao Rover? Mas nesse caso ele teria de fingir que continuava a possuir o Rover, o que passaria a envolver duas mentiras, e isso já era um pouco assustador. Nem é tanto as mentiras, à medida que tentava recordar, primeiro, que ele ainda tinha o Rover, segundo, que estava a falar a sério quanto ao segundo cão, e, terceiro, a pior de todas, que quando ele saísse e se levantasse de Lucille ele teria de dizer que infelizmente não poderia levar outro cão porque… Porquê? Só o facto de haver perfilado esses pensamentos, deixou-o exausto. Depois viu-se a si mesmo no meio do calor dela e pensou que a sua cabeça lhe explodia, e veio-lhe à ideia que quando tudo acabasse ela poderia insistir que ele levasse outro cachorrinho. Forçá-lo a isso. Afinal de contas, pensou ele, ela não lhe aceitou os três dólares e o Rover foi uma espécie de presente. Seria embaraçoso rejeitar a oferta de outro cão, especialmente por ele haver regressado especificamente por essa razão. Ele não se atreveria a ir para frente com tudo isso e desistiu da sua ideia. Mas depois arrastou de novo à sua memória a imagem dela escarrapachada no chão da maneira que o fizera, e ele voltou a procurar um motivo para alegar na recusa do segundo cão, depois de ter percorrido Brooklyn inteiro para o ir buscar. Ele quase que lhe podia ver a expressão da cara no momento em que ele recusasse o segundo cão, a estupefacção ou, pior, a fúria. Sim, era bem possível que ela ficasse furiosa e que visse tudo através dele, podendo-se sentir insultada, apercebendo-se de que ele apenas viera para se aproveitar dela e tudo o resto era uma leviandade. Até o poderia esbofetear. O que faria ele a seguir? Ele não podia dar luta a uma mulher adulta. Mas, ocorreu-lhe que por esta altura ela era bem capaz de já ter vendido os outros dois cães, que a três dólares cada um eram bastantes baratos. E depois? Ele começou a interrogar-se, suponhamos que ele lhe telefonava e, sem mencionar qualquer cão, lhe dizia que gostaria de regressar a sua casa para a visitar? Ele apenas teria de contar uma mentira, que ele ainda tinha o Rover e de que a sua família o adorava, e por aí fora. Ele podia facilmente aguentar com isso. Sentou-se ao piano e tocou alguns acordes, a maioria nas teclas pretas de som grave, para se acalmar. Na realidade, ele não sabia tocar piano, mas adorava inventar acordes, deixando que as vibrações atingissem os seus braços. Ele tocava, sentindo-se como se algo dentro dele abanasse desenfreadamente e houvesse colapsado ao mesmo tempo. Ele estava diferente do que tinha sido, não limpo e vazio, mas coberto de segredos e das suas mentiras, algumas ditas outras não, mas todas desagradáveis o suficiente para o manter ligeiramente fora da sua família, num local onde ele agora os poderia observar, e observá-los com ele. Ele tentou criar uma melodia com a mão direita tentando encontrar os acordes harmonizáveis com a esquerda. Por pura sorte, ele conseguia criar alguma beleza. Era realmente surpreendente, como os seus acordes só estavam ligeiramente dissonantes, com uma intensidade discordante mas mantinham-se, de algum modo, num diálogo harmonioso com a melodia tocada pela sua mão direita. A mãe dele entrou na sala surpreendida e pasmada de prazer. “O que se está a passar?” clamou ela em delírio. Ela sabia piano e tocar música de ouvido, tentou ensiná-lo mas falhou, porque, acreditou ela, o ouvido dele era muito bom e ele preferia tocar aquilo que ouvisse do que ter o trabalho de ler notas na pauta. Ela aproximou-se do piano e permaneceu perto do rapaz, observando-lhe as mãos. Espantada, desejando, como sempre que ele pudesse ser um génio, ela riu-se. “Estás a improvisar?” ela quase gritou, como se estivessem lado a lado a descer uma montanha russa. Ele apenas podia abanar a cabeça, não se atrevendo a falar, caso contrário talvez pudesse perder o que ele, de alguma forma, apanhou do ar, e riu-se com ela porque se sentia tão feliz por haver secretamente mudado, e, ao mesmo tempo, tinha dúvidas de que no futuro pudesse alguma vez voltar a tocar assim.

FIM


Arthur Miller, "Bulldog", The New Yorker, (8/13/2001), 2001, pp. 72-76 [Tradução: AMC, Mar/2008]

(nota: a divisão do conto em capítulos é da minha inteira responsabilidade – Cap. V: 4615 caracteres)

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Amanhã, terminarei, pelos menos de forma temporária, a minha actividade na blogosfera. A indisciplina e o torvelinho de emoções que se me assaltou nos últimos tempos, advindos sobretudo de um cansaço mental percebido – e, convenhamos, se aquele é de facto consciente, já não estamos nada mal… – não se coaduna com o vício diário de exibir a pobreza dos meus pensamentos ao mundo – e acreditem que não é falsa modéstia, vinha sentindo uma certa deterioração que com alguma premência exigia um afastamento… para não gangrenar e arruinar de vez (passe a redundância) um dos meus passatempos favoritos: escrever (e, claro, ser lido).
Às 20:45 estarei nas Antas a assistir ao primeiro jogo da época e será porventura o último até ao seu final. Com mais 6 ou menos 6 pontos lá estarei a emprestar a minha voz àqueles cujo justo domínio avassalador durante três décadas, dentro e fora de portas, um sistema judicial estranhamente unidireccional, tão podre e tão repugnante como aqueles que neste momento são por ele investigados, pretende fazer esquecer… Canal Caveira eclipsou-se e ninguém pretende que, recorrendo ao simples método da reconstituição histórica, se escrutine os 60 anos que precederam o 25 de Abril de 1974. A rádio não exibia repetições… Um tal de Joel, que substituiu Rui Oliveira e Costa, dizia na televisão pública na passada terça-feira com toda a desfaçatez: "seis pontos não compensam vinte anos". Ao ponto a que chegou a desvergonha e o descaramento de quem não consegue aceitar, pelo menos, algumas das inúmeras derrotas e de reconhecer o mérito a quem de facto o teve durante anos a fio; é que nem das "unhas" se conseguiu recordar!...
A promessa: deixarei aqui uma pequena história, conto ou, se preferirem, uma pequena peça escrita sem pretensões literárias de apelo à memória, que é tão curta neste país de medíocres. Irá chamar-se "Bokassa".
[cancelada por manifesta falta de vontade]

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