quinta-feira, 24 de julho de 2008

Vida apocalíptica de uma mulher-a-dias

«Depois disto, tive outra visão: havia uma porta aberta no céu e a voz que eu ouvira ao princípio, como se fosse de trombeta, falava comigo, dizendo: “Sobe aqui e vou mostrar-te o que deve acontecer depois disto.”»
Livro do Apocalipse 4,1


É incontornável começar qualquer referência ao último trabalho romanesco de valter hugo mãe (vhm) sem mencionar a curta epígrafe de autoria da poetisa Adília Lopes: «Deus é a nossa / mulher-a-dias.» (pág. 5)
Eis o terceiro romance do escritor vila-condense por adopção, depois do verdadeiramente brilhante O remorso de Baltazar Serapião, que para grande estranheza minha corria o risco de cair no olvido da torrente editorial de obras escritores portuguesas da nova geração.
Gonçalo M. Tavares e José Luís Peixoto, já conquistaram por direito próprio (algumas vezes por inexcedível verve encomiástica da crítica) o lugar cativo de autores de referência da geração de 70 do século XX. Enquanto o primeiro vai revelando de obra para obra uma maturidade que facilmente o colocará no registo inapagável dos autores de referência no futuro – embora, concorde que Tavares já nasceu para a literatura com um invulgar grau de consistência e de perfeição literárias, que fazem dele um fenómeno com repercussões internacionais –, o segundo, JL Peixoto, parece querer atravessar o duro deserto do aperfeiçoamento, se bem que não se furte a desmultiplicar-se em presenças em diversos eventos literários para lhe conferir a tal visibilidade que essa travessia lhe poderia retirar.
vhm parece querer seguir um percurso diferente. Poeta por gosto e eleição, surge-nos mais acessível, mais próximo ou presente – menos bartlebiano, se quisermos – a um público que gosta de literatura. Escreveu três pérolas em prosa O nosso reino (2004), O remorso… (2006), O apocalipse… (2008), equidistantes no tempo, que alguém não permitiu que se fechassem na terrível ostra da indiferença literária (repito-me), quando merecidamente lhe foi atribuído o Prémio Literário José Saramago 2007 (de atribuição bienal) pelo seu segundo romance e motivou a legítima indignação do inspirador do prémio «Este livro é um tsunami [...] Quando foi publicado? E os sismógrafos não deram por nada? Oh, que terra insensível: este livro é uma revolução.»
Em 2001 e 2005, Peixoto com Nenhum Olhar e Tavares com Jerusalém, por esta ordem, foram galardoados com o mesmo prémio, que em 2007 reparou uma injustiça latente, que de repente se tornaria numa ferida aberta difícil de sarar, cujo estudo etiológico poderia abalar as confortáveis posições de mentes tão eruditas.

O apocalipse dos trabalhadores retrata a vida quotidiana de gente simples, que reside em Bragança, cujo vazio, ou melhor, a insalubridade existencial é sentida e percebida pelos próprios, constituindo-se como a mola que liberta a perigosa esperança da existência de um paraíso, embora ininteligível, de contornos difusos, mas que sanciona a miséria terrena.
A maravilhosa frase de abertura diz tudo da protagonista, Maria da Graça, mulher-a-dias e para qualquer tipo de serviço:
«de noite, a maria da graça sonhava que às portas do céu se vendiam souvenirs da vida na terra.» (pág. 9)
Maria da Graça, miserável mulher-a-dias, casada com um pescador brigantino (uma das ironias da obra), Augusto, que a trata com toda a indiferença de um marialvismo remoto, um ornamento doméstico cuja posse foi legitimada pelo casamento. Ambos vivem num bairro social, onde a vivaça vizinha Quitéria a vai orientando nos assuntos terrenos e serve de conselheira perante os abusos do patrão, Sr. Ferreira, homem abastado de 76 anos, com uma cultura acima da média, que ao mesmo tempo que consuma os seus abusos sobre o corpo de Maria da Graça, lhe ensina a descodificar a beleza das artes através de Mozart e o seu Requiem, a poesia de Rilke e o esmiuçar interior dos personagens de Bergman. Entre eles gera-se uma obsessão amorosa digna dos melhores compêndios sadomasoquistas, que engrandece o ódio que Maria da Graça tem ao marido, visto como um estorvo, e, como uma boa mulher-a-dias, lhe vai regando a sopa com lixívia, o seu instrumento de trabalho.
Quitéria, pelo seu lado, apaixonada pela virilidade dos jovens corpos masculinos vai recebendo no seu apartamento alguns homens, sobretudo emigrantes do leste europeu, desejosos de apagar o fogo da sua paixão no seu corpo pequeno e anafado da portuguesa. Descobre Andriy, ucraniano natural de Korosten, onde deixou pai e mãe no limiar da loucura provocada pelo terror vivenciado num passado recente violento, que deixou marcas demenciais indeléveis. As dificuldades de adaptação a um país que lhe parece hostil e a uma língua intrincada bastante diferente da sua e a incerteza pela subsistência mínima e sobrevivência dos pais, acrescentando-se a exploração de que é vítima nos empregos que vai encontrando, levam a adopção deste por uma benfeitora, a tal Quitéria, que abandonando os expedientes remuneratórios que o seu corpo lhe permite, oferece-se nas agências funerárias como carpideira e veladora de cadáveres nas capelas mortuárias das igrejas antes de realizado o enterro e perante a indisponibilidade de familiares e amigos do defunto. Quando Ferreira morre num acto de erudição inusitado, Maria da Graça sem o sustento de quatro dias por semana na casa do amado/odiado patrão – “o maldito” – acompanha a amiga nas longas e tenebrosas noites por capelas mortuárias transmontanas.

Neste rico mosaico do desespero quotidiano luso, vhm dá-nos a conhecer, através de monólogos, o aflitivo e dilacerado interior dos personagens perante a sordícia enfrentada quotidianamente. É nestes solilóquios e nos divertidíssimos devaneios de Maria da Graça, em que dialoga com S. Pedro às portas do Céu, que se estabelece a base da narrativa do romance.
vhm trabalha com mestria as utopias de gente destroçada à espera de uma revelação.
Embora, para ser honesto, tenha de confessar que a primeira parte da obra conduziu-me quase a um gesto assassino de fechar o livro até próxima oportunidade, a minha perseverança leitora e a confiança nas capacidades do autor, levaram-me a resistir ao cometimento desse acto que criminosamente rotularia de ilegível, para a minha eternidade e de forma errada, um excelente livro.
O apocalipse dos trabalhadores não é um livro de leitura fácil; é, sobretudo, introspectivo e faz um apelo em surdina à reflexão e à releitura. E só assim, muitas vezes, as entrelinhas foram descortinadas.
Se nos ativermos a aspectos meramente formais, vhm insiste em deixar a sua marca não usando, de todo, as maiúsculas (aliás como no seu nome literário), nem mesmo quando grafa nomes próprios, cidades e países. É a marca de vhm. Marcas que se distinguem por todo o mundo na nova geração de autores, sendo talvez Ali Smith o caso mais paradigmático e similar com o autor português. Ora, sendo eu um tradicionalista na, se quisermos, composição gráfica do romance (parágrafos, travessões, pontos e vírgulas, etc.), tenho de afirmar que, apesar do elevado grau de excelência do conteúdo, essas novidades estilísticas atrapalham, por alguma irritação experimentada, a leitura da obra, sem contudo a ferirem de morte.
Sobre o conteúdo, vhm é directo e cruel, não se atém em eufemismos que pudessem servir de disfarce à coloquialidade que as personagens, por si escolhidas, exigem. É todavia subtil, especialmente, na preciosidade das suas ironias, e de um humor, por vezes cortante, de ir às lágrimas, de que o cão que persegue Maria da Graça e que mais tarde é por si adoptado, dando-lhe o nome de Portugal, «é um rectângulo castanho, um ridículo rectângulo castanho, deve estar cheio de pulgas e chama-se portugal. tem razão, é um bom nome. vamos dar-lhe banho.» (pág. 30) é disso um exemplo; como no caso da agente da polícia desconfiada, que investiga a morte de um dos personagens, materialista e truculenta, quase niilista, que se chama Quental.

Para terminar não resisto a postar aqui um breve trecho que, de forma alguma, prejudica o necessário segredo do desenlace, e que é bem demonstrativo de tudo o que referi nos parágrafos anteriores (fiquei à beira das lágrimas):
«o tempo haveria de continuar o seu ofício e desculpar toda e qualquer ansiedade. sim, fora só ansiedade. porque o amor não cabia quieto no espaço tão pequeno que era o corpo de uma mulher. o portugal ainda latiu por um breve segundo, depois ficou calado, apenas a ver, tão fugazmente inteligente, intensamente ternurento e absolutamente imprestável.» (pág. 182)

Classificação: **** (Bom)

Referência bibliográfica:
Valter Hugo Mãe, O apocalipse dos trabalhadores. Matosinhos: QuidNovi, 1.ª edição, Julho de 2008, 182 pp.

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