terça-feira, 7 de outubro de 2008

Depois de Revel, um remate com Gombrowicz

Witold GombrowiczFicaram coisas por dizer… ou melhor, por citar dos assomos de perplexidade de Jean-François Revel perante a sobranceria e a obstinação primária da elite intelectual europeia, em particular da francesa, perante a criação artística e filosófica norte-americana, infectada por um dogmatismo torpe que rejeita liminarmente qualquer tipo de manifestação política, económica, social, cultural e tecnológica provinda do outro lado do Atlântico.
Talvez insularidade concorde com globalização, ou imperialismo com ignorância (ou primitivismo). Possivelmente, noções como liberdade e democracia, pluralidade e livre iniciativa, se tenham transformado em conceitos tão desfasados que, à luz do espírito do europeu moderno e progressista, o caminho da libertação se dê pela opressão, aproximando, em síntese, o extremista racista e xenófobo do revolucionário antiglobalização. Perdeu-se a referência social por uma heteróclita fusão de ideologias. E Sempre o 11 de Setembro, para o melhor e para o pior, e o caso paradigmático daquilo que referi no parágrafo anterior, contado (ainda) por Revel à laia de demonstração: os festejos com champanhe de Le Pen e do seu inominável séquito na sede da Frente Nacional em Paris enquanto assistiam ao desmoronamento em directo das Torres Gémeas em Nova Iorque, e os apupos ao presidente da confederação sindical francesa CGT (equivalente à nossa CGTP-IN) quando, em 16 de Setembro de 2001, pretendia fazer três minutos de silêncio em memória das vítimas dos atentados ao WTC e ao Pentágono.

Termino com Gombrowicz [na imagem], postando um excerto de um deslumbrante prefácio ao seu conto «Filifor revestido de criança» [tradução livre], que dedico à Academia Sueca e, de forma especial e terna, ao seu secretário permanente Horace Engdahl:

«Meus senhores, existem sobre a terra sociedades mais ou menos ridículas, mais ou menos desonrosas, vergonhosas e humilhantes, e desta forma a quantidade de estupidez é igualmente variável. Assim, por exemplo, o meio dos cabeleireiros parece-me, à primeira vista, mais sujeito à imbecilidade que o meio dos sapateiros. Mas o que se passa no meio artístico do orbe supera todas as marcas da estupidez e da infâmia, a tal ponto que um homem normalmente decente e equilibrado não pode senão baixar o seu rosto inundado pelo suor da vergonha, perante essas orgias infantis e pretensiosas. Oh, esses cantos sublimes que ninguém escuta! Oh, as conversas lúcidas dos sabedores e o frenesim dos concertos e nas sessões de leitura de poesia, oh, aquelas iniciações íntimas e aquelas valorizações, discussões, e oh, os rostos dessas mesmas pessoas quando declamam ou escutam, celebrando entre si o santo mistério do belo! Por que dolorosa antinomia tudo o que vocês fazem ou dizem se converte, sob estas circunstâncias, em fantochada e vergonha? Se, com o passar dos séculos, uma sociedade cai em tais convulsões de imbecilidade, então, quase com toda a certeza, pode-se formular o juízo de que as suas ideias não correspondem à realidade, que, simplesmente, vive de ideias falsas. Já que, sem dúvida alguma, as vossas concepções artísticas constituem o cúmulo da ingenuidade conceptualista; e se querem saber como e em que sentido teríamos de as transformar, e qual deveria ser a concepção justa e não ridícula, eu poder-vos-ei dizê-lo de seguida, mas têm de apurar o ouvido.
«Na realidade, o que se imagina aquele que, nos nossos tempos, sente a vocação da pena, do pincel ou do clarinete? Ele, antes de tudo, quer ser artista. Quer criar arte. Anseia, então, através da beleza, da bondade e da verdade satisfazer-se a si mesmo e aos seus concidadãos, propõe-se a ser Vate, Bardo, Sacerdote e obsequiar com o seu ser os restantes, imolar-se no altar do sublime, procurando, em prol da humanidade, esse maná celestial tão desejado. Ao mesmo tempo, quer dedicar o seu Talento ao serviço da ideia e, talvez, conduzir a humanidade ou a nação a um melhor futuro. Que fins tão nobres! Que magníficos desígnios! Acaso não eram esses os fins e os desígnios de Shakespeare, Goethe, Beethoven ou Chopin? Mas aqui reside o problema, na realidade, vocês não são Chopins, nem Shakespeares, senão, no melhor dos casos, semi-Shakespeares e um quarto de Chopin (oh, as malditas partes de novo!) e, por conseguinte, essa atitude só põe a nu a vossa triste inferioridade e insuficiência, e iria parecer como se pretendessem, a toda a força, saltar para o pedestal em torpes saltos, pondo em perigo as mais sensíveis e preciosas partes do vosso corpo.»
Witold Gombrowicz, Ferdydurke, pp. 73-74
(Buenos Aires: Sudamericana, segunda edición, enero de 1983, 268 pp; tradução do polaco para castelhano: Witold Gombrowicz; obra original: Ferdydurke, 1937.)

[Nota: traduzido por AMC a partir da versão espanhola (Argentina), por sua vez traduzida do polaco pelo próprio autor em 1964.]

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