terça-feira, 21 de outubro de 2008

Sextante e Capote

Foi interessante a conversa mantida entre Paula Moura Pinheiro e os editores João Rodrigues (Sextante Editora) e Paulo Teixeira Pinto (Guimarães Editores) na 106.ª edição do programa Câmara Clara.
Como tudo se torna mais agradável quando se ouve falar de livros por pessoas que os conhecem e a eles dedicam a sua paixão, de forma independente aos impulsos normalizadores do mercado que busca na Literatura a reverberação da frugalidade e da leveza intelectual da vida quotidiana contemporânea.
João Rodrigues falou do eventual insucesso comercial do seu último lançamento: os Contos Completos de Truman Capote (1924-1984). Mas a edição desta obra, como a de outras largas centenas que ainda permanecem por publicar em Portugal, tem de ser feita para que, pelo menos, se consiga abalar esse tal impulso normalizador, cultor da mediocridade e do pensamento mínimo – e daí a tal necessidade de divulgação de um cânone literário, como num programa anterior referiu Francisco José Viegas. Falou-se da imperiosa necessidade de existir um projecto cultural inteligível materializado num catálogo coerente oferecido pelas pequenas editoras, sem isso corre-se o sério risco de se quebrar, de forma definitiva, o elo de confiança entre o leitor e o editor, sendo simultaneamente factor de diferenciação e de sobrevivência.
A propósito do livro como produto comercial, João Rodrigues citou uma frase curiosa, proferida por um conhecido editor num colóquio literário: «o editor não tem de encontrar livros que se vendam, mas sim vender os bons livros que encontra.»

Chegamos, assim, a Truman Capote numa colectânea de vinte contos de qualidade manifesta, com apresentação de Reynolds Price. A antologia foi originalmente editada pela Random House em 2004 e inclui todos os contos de A árvore da noite e outras histórias (A Tree of Night and Other Stories, 1949; em Portugal editada conjuntamente com a novela A Harpa de Ervas pela Relógio D’Água, com tradução de Paulo Faria), para além de “Mojave” incluído em duas obras, em Música para Camaleões (Music for Chameleons, 1980; obra esgotada há anos em Portugal) e como capítulo do romance inacabado, pseudo-proustiano, recentemente editado em Portugal pela Dom Quixote, Súplicas Atendidas (Answered Prayers, 1987). Os restantes contos foram publicados separadamente em livros ou revistas.
Eis o primeiro parágrafo (e pouco mais...) de um dos seus melhores contos, “Miriam” (1945), publicado na revista Mademoiselle, com o qual Capote venceu o prestigiadíssimo O. Henry Award pelo melhor conto de estreia em 1946 – conquistaria o primeiro prémio em 1948 com o conto publicado na revista The Atlantic MonthlyFechar uma última porta” (“Shut a Final Door”, 1947) e o terceiro prémio em 1951 com “Casa de Flores” (“The House of Flowers”, 1951) publicado na revista Mademoiselle:

«Há vários anos que Mrs. H. T. Miller vivia sozinha num apartamento confortável (duas divisões e kitchenette), num brownstone remodelado perto do East River. Era viúva: o seguro de vida de Mr. H. T. Miller permitira-lhe receber uma soma razoável. Os seus interesses eram limitados, não tinha amigos dignos desse nome, e, no que tocava a viagens, raramente ia mais longe do que a mercearia da esquina. As outras pessoas do prédio pareciam nunca reparar nela: as suas roupas eram banais, o cabelo de um tom cinzento-escuro, curto, ondulado sem grandes primores; não usava cosméticos, os seus traços eram simples e vulgares, e, no seu último aniversário, fizera sessenta e um anos. As suas actividades raramente eram espontâneas: mantinha as duas assoalhadas num brinquinho, fumava um cigarro uma vez por outra, preparava as suas próprias refeições e tratava do canário.
«Até que conheceu Miriam. (…)»
Truman Capote, “Miriam”, Contos Completos, pág. 61.
[Lisboa: Sextante, 1.ª edição, Setembro de 2008, 413 pp.; tradução de José Vieira de Lima; obra original: The Complete Stories of Truman Capote, 2004.]

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