sábado, 1 de novembro de 2008

Não, lamento, é cinema

A Turma, de Laurent Cantet (Entre les murs, 2008)

Não é preciso recuar muito na já longa semi-recta do tempo cinematográfico para evocar obras da 7.ª arte que fazem da claustrofobia das relações humanas, literalmente entre quatro paredes, e o inevitável choque de idiossincrasias e de personalidade, a sua acção. São obras que evocam o limite, a exaustão, o inferno da convivência, a tortura psicológica da colisão e natural dissolução de diferentes formas de pensar, sentir e agir numa espécie de matéria viscosa, inconsistente e incandescente que agrega todos os pensamentos, sentimentos e atitudes de um grupo, à espera de um momento de escape para libertar toda a sua energia avassaladora.
Basta recordar – e foi o primeiro filme que assomou à minha mente progressivamente amnésica quando abandonava a sala de cinema – o admirável Doze Homens em Fúria (12 Angry Men) baseado na peça de teatro de Reginald Rose e realizado para o cinema em 1957 por Sidney Lumet e para a televisão por William Friedkin em 1997, ambos com um elenco de luxo. E depois surgiram, enquanto assentia sozinho nas escadas rolantes do centro comercial num vigor de lunático, alguns dos mais claustrofóbicos produtos do mestre Hitchcock: A Corda (Rope, 1948), A Janela Indiscreta (Rear Window, 1954). Veio por fim, antes de chegar ao parque de estacionamento e desviar todas as minhas atenções para o comummente olvidável lugar onde estaciono o carro, um filme mais recente, o excepcional – nem para todos, (in)felizmente – Entrevista (Interview, 2007) de Steve Buscemi.

E que bem ficaria apenas Entre les Murs, ou quando muito Entre as Paredes (ou mesmo, Muros para que se lhe desse um toque mais austero e sombrio) para simbolizar a natureza prometeica de uma das mais duras profissões do mundo nos dias que correm – apesar da incomparabilidade de universos, pela menor dispersão de classes, raças e etnias, por se tratar de uma faixa etária mais avançada (mais amadurecida) e pela filtragem à partida dos verdadeiros problemas económicos e sociais, tenho alguma experiência no assunto para poder aferir do necessário grau de resistência de uma classe de heróis, cumulativamente maltratados por uma classe política, quer de forma directa, através de políticas de educação catastróficas, quer de forma indirecta, por uma macro acção legislativa, executiva e reguladora na condução do destino da população, com repercussão nas gerações mais jovens, face às rápidas e implacáveis mudanças da envolvente e da sua influência sobre as mentalidades.

François Bégaudeau (n. 1971) escreveu o livro de base, que dá o nome ao filme, e o respectivo argumento. Licenciado em Literatura, passou por uma curta experiência de professor do ensino secundário público francês num bairro de Paris. É ele próprio a dar corpo ao professor de Francês "François Marin" numa escola pública parisiense. Destaco o sufocante realismo de toda a sua actuação, constrangedora para quem pretendia assistir, no conforto da cadeira, a um universo escolar cor-de-rosa, eivado de alguns pontos negros.
Laurent Cantet (n. 1961) filmou com mestria esta luta de disseminação do poder e de hierarquias, de choque cultural e étnico, de visões do mundo entre duas gerações que paradoxalmente se entrecruzam no tempo, dentro das claustrofóbicas quatro paredes de uma sala de aula onde perambula um estado de rebelião latente, pronto a irromper, ameaçando não se deter, como um engenho explosivo, dentro dos muros da escola normalizadora de comportamentos de uma sociedade caduca.
Cantet consegue captar, com a sapiência e a maturidade de um veterano das artes cinematográficas, a oposição de atmosfera entre a sala de aula e a sala dos professores, a antinomia ambiental, se quisermos, apesar das inúmeras e díspares idiossincrasias dos adultos já formados pela mesma escola que compõem o corpo docente, realçando-a como um ponto de fuga, onde o alheamento e a frugalidade funcionam como a válvula de escape do ambiente de guerrilha vivido noutra parte do edifício há cerca de cinco minutos: a máquina do café ou o anúncio da gravidez de uma colega de trabalho, são o exemplo paradigmático dessa escapatória.
É um filme duro, que exige introspecção e disponibilidade mental.

A sala onde assistia ficou, no final, com metade da lotação inicial. Pressentia um abanar de cabeças rotuladoras da inactividade cénica dos filmes franceses, como se tratasse apenas de uma peça de teatro filmado. Mas aqueles que saíram antes do mês de Junho, do recreio de todo apaziguamento das tensões sofridas durante noves meses, enganaram-se: não, lamento, isto é (mesmo) cinema, porque, de outro modo, aquela história jamais poderia ser assim contada, com todo aquele desconforto visual.

Apenas para a história da 7.ª arte:
Depois de Maurice Pialat ter vencido a Palma de Ouro do Festival de Cinema de Cannes em 1987 com o filme Sob o Sol de Satanás (Sous le soleil de Satan), Laurent Cantet quebra o jejum francês de 21 anos deixando o galardão de novo em casa:

Eis os vencedores da Palma de Ouro de Cannes desde 1987 até aos dias de hoje (com o infeliz e seboso ano de 2004):

  • 2007 – 4 Meses, 3 Semanas e 2 Dias (4 Luni, 3 Saptamini si 2 Zile) de Cristian Mungiu, Roménia
  • 2006 – Brisa de Mudança (The Wind That Shakes the Barley), de Ken Loach, Irlanda
  • 2005 – A Criança (L’Enfant), de Luc e Jean-Pierre Dardenne, Bélgica
  • 2004 – Fahrenheit 9/11, de Michael Moore, Estados Unidos
  • 2003 – Elefante (Elephant), de Gus Van Sant, Estados Unidos
  • 2002 – O Pianista (The Pianist), de Roman Polanski, Polónia
  • 2001 – O Quarto do Filho (La Stanza del Figlio), de Nanni Moretti, Itália
  • 2000 – Dancer in the Dark, de Lars von Trier, Dinamarca
  • 1999 – Rosetta, de Luc e Jean-Pierre Dardenne, Bélgica
  • 1998 – A Eternidade e Um Dia (Mia aioniotita kai mia mera), de Theo Angelopoulos, Grécia
  • 1997 – O Sabor da Cereja (Ta'm e guilass), de Abbas Kiarostami, Irão e A Enguia (Unagi), de Shohei Imamura, Japãoex aequo
  • 1996 – Segredos e Mentiras (Secrets & Lies), de Mike Leigh, Reino Unido
  • 1995 – Underground – Era Uma Vez Um País (Bila jednom jedna zemlja), de Emir Kusturica, Jugoslávia
  • 1994 – Pulp Fiction, de Quentin Tarantino, Estados Unidos
  • 1993 – O Piano (The Piano) de Jane Campion, Austrália e Adeus Minha Concubina (Ba wang bie ji), de Chen Kaige, Chinaex aequo
  • 1992 – As Melhores Intenções (Den Goda Viljan), de Bille August, Dinamarca
  • 1991– Barton Fink, de Joel e Ethan Coen, Estados Unidos
  • 1990 – Um Coração Selvagem (Wild at Heart), de David Lynch, Estados Unidos
  • 1989 – Sexo, Mentiras e Vídeo (Sex, Lies, and Videotape), de Steven Soderbergh, Estados Unidos
  • 1988 – Pelle, O Conquistador (Pelle Erobreren), de Bille August, Dinamarca

1 comentário:

Mapas De Espelho ( Imagem Suzzan Blac) disse...

A MEducação, Sindicatos, Docentes y SCívil deveriam ir vê-lo ou então:Obrigatório - Horário Nobre - em quaisquer dos canais generalista.
A conversa fiada sobre a avaliação dos Profs. seria outra, pelo menos mais construtiva.