domingo, 1 de fevereiro de 2009

Praia

«Larguei a heroína e voltei à minha terra e comecei com o tratamento de metadona que me administravam no ambulatório e poucas coisas mais tinha de fazer excepto levantar-me a cada manhã e ver televisão e conseguir dormir à noite, mas não podia, alguma coisa me impedia de fechar os olhos e descansar, e essa era a minha rotina, até que um dia não aguentei mais e comprei um fato de banho preto numa loja do centro da povoação e fui à praia, com o fato de banho vestido e uma toalha e uma revista, e coloquei a minha toalha não muito perto da água e de seguida estirei-me e estive um pouco de tempo a pensar se haveria de ir ou não tomar banho, vislumbrava muitos motivos para o fazer, mas também vislumbrava alguns motivos para o não fazer (as crianças que tomavam banho na beira-mar, por exemplo), assim o tempo passou e voltei a casa, e na manhã seguinte comprei creme de protecção solar e fui de novo à praia, e por volta do meio-dia dirigi-me ao ambulatório e tomei a minha dose de metadona e saudei algumas caras conhecidas, nenhum amigo ou amiga, só caras conhecidas da fila para a metadona que acharam estranho ver-me de fato de banho, e eu como se nada fosse, e logo voltei a caminhar para a praia e desta vez dei o primeiro mergulho e tentei nadar, porém não consegui, mas isso para mim foi o suficiente, e no dia seguinte voltei à praia e de seguida voltei a untar o corpo com o protector solar e depois fiquei a dormir na areia, e quando acordei sentia-me bastante descansado, e não tinha queimado as costas nem nada de nada, e assim passou uma semana ou talvez duas, não me lembro, onde não restava qualquer dúvida era que a cada dia que passava estava mais moreno e embora não falasse com ninguém a cada dia sentia-me melhor, ou diferente, que não é a mesma coisa mas no meu caso parecia, e um dia apareceu na praia um casal de velhos, disso recordo-me com nitidez, via-se que já andavam há muito tempo juntos, ela era gorda, ou cheiinha, e devia andar aproximadamente pelos 70 anos, e ele era magro, ou mais que magro, um esqueleto que caminhava, creio que foi isso que me chamou a atenção, porque regra geral nunca reparava na gente que ia à praia, mas nestes reparei devido à magreza do tipo, o que vi assustou-me, merda, é a morte que vem buscar-me, pensei, mas não vinha, era só um casal idoso, ele com uns 75 e ela com uns 70, ou ao contrário, e ela parecia gozar de boa saúde, e ele tinha cara de quem iria bater a bota a qualquer momento ou que este seria o seu último Verão, em princípio, ultrapassado o primeiro susto, tive dificuldades em desviar o olhar da cara do velho, da sua caveira apenas coberta por uma fina camada de pele, mas logo me habituei a olhá-los de forma dissimulada, deitado na areia, de bruços, com a cara tapada pelos braços, ou a partir do passeio, sentado num banco em frente à praia, enquanto fingia que tirava a areia do corpo, e lembro-me que a velha chegava sempre à praia com um guarda-sol em cuja sombra se introduzia de forma pressurosa, sem fato de banho, apesar de por vezes a ter visto de fato de banho, mas mais usualmente com um vestido de verão, bastante largo, que lhe fazia parecer menos gorda do que era, e debaixo do guarda-sol a velha passava o tempo a ler, levava um livro bastante grosso, enquanto o esqueleto que era seu marido se estendia na areia, vestido unicamente com um fato de banho diminuto, quase uma tanga, e absorvia o sol com uma voracidade que a mim me trazia recordações longínquas, de junkies desfrutando estáticos, de junkies concentrados no que faziam, na única coisa que podiam fazer, e naquele momento ficava a doer-me a cabeça e ia-me embora da praia, comia no Paseo Marítimo, uma tapa de anchovas e uma cerveja, e depois punha-me a fumar e a observar a praia através dos janelões do bar, e depois voltava e aí seguia o velho e a velha, ela debaixo do guarda-sol, ele exposto aos raios do sol, e então, de forma involuntária, dava-me vontade de chorar e mergulhava na água e nadava, e quando já me havia afastado bastante da beira-mar observava o sol e parecia-me estranho que estivesse ali, essa coisa grande e tão diferente de nós, e de imediato punha-me a nadar até à chegar à orla (por duas vezes estive a ponto de me afogar) e quando chegava deixava-me cair na minha toalha e ficava um bom bocado a respirar com dificuldade, mas sempre espreitando até onde se encontravam os velhos, e depois talvez tivesse dormido deitado na areia, e quando acordava a praia começava a esvaziar-se, mas os velhos continuavam lá, ela com o seu romance debaixo do guarda-sol e ele deitado de costas, numa zona sem sombra, com os olhos fechados e uma expressão estranha na sua caveira, como se sentisse cada minuto que passava e o desfrutasse, mesmo que os raios de sol fossem já débeis, mesmo que o sol já se encontrasse do outro lado dos edifícios da primeira linha da costa, do outro lado das colinas, mas isso parecia não lhe importar, e então, no momento de acordar eu observava-o e observava o sol, e por vezes sentia nas costas uma dor ligeira, como se naquela tarde me houvesse bronzeado mais do que o normal, e de imediato observava-os e logo me levantava, jungia a toalha ao corpo como uma capa e ia-me sentar num dos bancos do Paseo Marítimo, onde fingia que sacudia a areia que não tinha nas pernas, e a partir daí, desde essa altura, a visão do casal era diferente, dizia a mim mesmo que talvez ele não estivesse a ponto de morrer, dizia a mim mesmo que o tempo talvez não existisse tal como eu acreditava que existia, reflectia sobre o tempo enquanto a distância do sol alongava as sombras dos edifícios, e de seguida ia para casa e tomava um duche e olhava para as minhas costas vermelhas, umas costas que não pareciam minhas mas de outro tipo, um tipo a quem ainda faltariam muitos anos para eu conhecer, e depois ligava a televisão e via programas que não entendia em absoluto, até que ficava a dormir no sofá, e no dia seguinte voltava ao mesmo, a praia, o ambulatório, outra vez a praia, os velhos, uma rotina que por vezes evitava o aparecimento de outros seres que apareciam na praia, uma mulher, por exemplo, que estava sempre de pé, que jamais se recostava na areia, que ia vestida com a parte de baixo de um biquíni e com uma camisa azul, e quando entrava no mar só se molhava até aos joelhos, e que lia um livro, como a velha, mas esta mulher lia-o de pé, e por vezes agachava-se, embora de uma forma esquisita, e agarrava numa garrafa de Pepsi de litro e meio e bebia, de pé, claro, e a seguir deixava a garrafa sobre a toalha, que eu não fazia a mínima ideia porque é que a havia trazido se nunca se estendia nela e tão-pouco tomava banho, e por vezes esta mulher metia-me medo, parecia-me excessivamente esquisita, mas a maioria das vezes só me metia pena, e também vi outras coisas estranhas, na praia passam-se sempre coisas assim, talvez porque é o único sítio onde todos estamos meio despidos, mas que não tinham importância alguma, uma vez pareceu-me ver um ex-junky como eu, enquanto caminhava pela beira-mar, sentado num montículo de areia com um bebé de meses sobre as suas pernas, e de outra vez vi umas raparigas russas, três raparigas russas, que provavelmente eram putas e que falavam, as três, ao telemóvel e riam-se, mas na verdade o que mais me interessava era o casal de velhos, em parte porque tinha a impressão de que o velho ia morrer a qualquer instante, e quando pensava nisto, ou quando dava conta de que estava a pensar nisto, ocorriam-me sempre ideias disparatadas, como a que depois da morte do velho surgiria um maremoto, a povoação era destruída por uma onda gigantesca, ou punha-se a tremer, um terramoto de grande magnitude faria desaparecer a povoação inteira no meio de uma onda de pó, e quando pensava no que acabo de dizer escondia a cabeça entre as mãos e desatava a chorar, e enquanto chorava sonhava (ou imaginava) que era de noite, pelas três da manhã, e que eu saía da minha casa e ia à praia, e na praia encontrava o velho estendido na areia, e no céu, próximo das outras estrelas, mas mais próximo da Terra que das outras estrelas, brilhava um sol negro, um enorme sol negro e silencioso, e eu descia até à praia e também me estendia na areia, as duas únicas pessoas na praia eram o velho e eu, e quando voltava a abrir o olhos apercebia-me de que as putas russas e a rapariga que estava sempre de pé e o ex-junky com o bebé nos braços me contemplavam com curiosidade, perguntando-se quem, por acaso, poderia ser aquele tipo estranho, o tipo que tinha as costas e os ombros queimados, e até a velha me observava a partir da frescura do seu guarda-sol, interrompia a leitura do seu livro interminável por um segundos, perguntando-se talvez quem era aquele jovem que chorava em silêncio, um jovem de 35 anos que nada tinha, mas que estava a reconquistar a vontade e o valor e que sabia que ainda ia viver por mais uns tempos.»
Roberto Bolaño, “Playa”, in El Mundo*, 17/Agosto/2000 [tradução: AMC, 2009]

*série de contos escritos por vários autores subordinados ao tema “O pior Verão da minha vida” e publicados no Verão de 2000 no jornal espanhol El Mundo. Para além de Bolaño participarem neste desafio escritores como Zoé Valdés, Francisco Umbral, Eduardo Mendicutti, Manuel Hidalgo, Juan Marsé, Ignacio Padilla, Lucía Etxebarria, Guillermo Cabrera Infante, José Ovejero, entre outros.

A habitual citação dominical foi substituída pela “citação completa” de um conto de Bolaño, publicado em 2000 no mencionado jornal espanhol. A sua pertinência deve-se à habitual especulação necrófaga sobre a vida de um determinado autor que se destacou em vida pela excelência da sua literatura. Foi assim com Hemingway, tentaram fazê-lo com Henry James, e iniciou-se agora a campanha de esquadrinhamento da vida privada de Bolaño. Com este conto, alguns biógrafos de pacotilha vêem nele um ex-heroinómano, que lutou anos contra o seu vício quinciano. Outros investigam ainda possibilidade de Bolaño não ter estado no Chile a 11 de Setembro de 1973 – como o autor insistentemente afirmava nos seus escritos –, quando se deu o Golpe de Estado de Augusto Pinochet contra o Presidente socialista Salvador Allende. Logo a sua famosa prisão por uma semana acusado de ser terrorista foi uma farsa. E hão-de continuar. Mais episódios surgirão independentemente da vontade da família, dos seus amigos e editores.

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