quarta-feira, 14 de outubro de 2009

A obra-prima inédita perante o editor: propensão para a asnidade

Qual de nós não leu, ou pelo menos ouviu contar, pequenas histórias sobre a recusa de publicação de numerosas obras literárias que, hoje em dia, após a superação da resistência editorial, algumas vezes obscura, porém na sua maioria por pura asnidade, se transformaram em objecto de referência (e de reverência) por uma comunidade de eruditos, fazedores de cânones?
E mais curiosas se tornam essas histórias quando as vítimas são hoje autores consagrados, vistos, também pelo público, como parte integrante e fundamental, por direito próprio, da História da literatura, pela ruptura que primordialmente na arte se manifesta através da criatividade e da inovação: um novo estilo, uma nova técnica narrativa, por exemplo.

Eis algumas sentenças de alguns prestimosos editores, ao longo dos tempos*:
  • Marcel Proust (1.º relatório de leitura de Em Busca do Tempo Perdido): «Sou talvez um pouco limitado, mas não consigo compreender a necessidade de consagrar trinta páginas para narrar como alguém se volta e torna a voltar na cama sem conseguir dormir.»
  • Herman Melville (Moby Dick): «É pouco provável que uma tal obra possa interessar a um público jovem.»
  • Gustave Flaubert (Madame Bovary): «Caro Senhor, o seu romance submerge sob um mar de detalhes bem desenhados, mas inteiramente supérfluos.»
  • Emily Dickinson (e a sua obra poética inicial): «As suas rimas estão todas erradas.»
  • Colette (Claudine à l’École): «Receio não vender mais que dez exemplares.»
  • George Orwell (A Quinta dos Animais): «É impossível vender uma história de animais nos Estados Unidos.»
  • Anne Frank (e o seu famoso Diário): «Esta rapariguinha não parece fazer menor ideia de que o seu livro não pode ser senão um objecto de curiosidade.»
*Citações recordadas por Umberto Eco, parte integrante do magnífico livro dialógico, recentemente publicado em Portugal: Umberto Eco & Jean-Claude Carrière, A Obsessão do Fogo, pp. 187-188 [Lisboa: Difel, Julho de 2009, 305 pp; tadução de Joana Chaves; título original: N’espérez pas vous débarrasser des livres, 2009]

Se rejeitar uma primeira obra de alguém que se desconhece, cuja desafortunada vida nem sequer lhe possibilitou um encontro casual numa tasca da moda para comer umas moelas regadas com o tinto carrascão da casa, pode ser considerado como azar manifesto ou fazendo parte das vicissitudes da vida, plena de encontros e desencontros; já não se entende a não recusa de publicação de obras miseráveis que enxameiam a estantes das nossas criteriosas livrarias, escritas pelos tais consagrados. Neste último caso, há aqueles seres de coração abarrotado de candura – santo escreve-se com as mesmas letras de tanso – que se referem ao fenómeno cientificamente comprovado da auto-regulação como meio de triagem – agora, esses crédulos até podem encontrar respaldo na teoria económica com a inusitada atribuição do Nobel da Economia a Elinor Ostrom e as suas lagostas vermelhas (por mera morfologia e não militância). Há autores que afirmam ter as suas secretárias repletas de obras impublicáveis. Outros há, contudo, que qualquer composição gráfica de caracteres saída da sua pena, comandada pela soberba de um cérebro onanista – cuidado com a divina e vil cegueira! –, empanturram as editoras com as suas baboseiras literárias. Eles estão aí, à vista de qualquer olho bibliómano mais atento. E as suas excreções literárias são esperadas com avidez pelos habituais críticos que assinam as suas recensões, possivelmente encharcados de psicotrópicos, adjectivando profusamente uma baboseira livresca, de preferência com sinónimos tonitruantes e truísmos a apelar à devolução imediata e sem piedade do dinheiro despendido na aquisição da denominada revista literária (ou suplemento de jornal). Desenganem-se aqueles que julgam que a tal modorra de sempre dizer bem nas revistas da especialidade de uma obra que não se leu, cujo nome do obreiro é por demais conhecido, resulta do efeito hipnótico de um princípio activo farmacológico como, por exemplo, do potente e eficaz zolpidem. A paralisia é bem mais grave, é acediosa pelo amiguismo e pela cúmplice troca de favores; amabilidades que se propagam em cadeia e que num ápice regressam de forma silente ao emissor, nesse momento já agrilhoado e com o fígado exposto às bicadas dos pássaros, em que o móbil, desta feita, se traduz pela chama roubada aos que verdadeiramente a mereciam, para que os privilegiados, que têm medo do escuro, pelo menos se aqueçam pela refracção da luz na campânula ionizada que os protege na torre de marfim. Flagelo. Martírio. É bem feito.