quinta-feira, 27 de maio de 2010

O Peixe-Gato e a Cosmogonia de um Mancuniano

Júbilo e resignação. Uma alegria desmedida quando, por mero acaso, descobri que a obra-prima do realizador britânico Mike Leigh, Nu (Naked, 1993) foi finalmente editada em DVD em Portugal*, seguida da assunção da triste realidade materializada no conformismo que de imediato se abateu sobre o meu estado de espírito volátil – arriscando-me a citar Dalí através de Orwell, citação assestada em obra não escrita por Rui Santos, que «toda a vida quando vista de dentro, não passa de uma série de derrotas» –, porque nasci neste canto geográfico da finisterra, onde tudo o que potencialmente poderá ser apreciado como arte pertence a dois tipos de categorias de acesso restrito. A primeira categoria tem um cariz mais prático, físico, de mera locomoção; e a segunda resulta da estrutura da mentalidade de um povo: filistina, utilitarista e consumista. A primeira porque, pelos custos de transacção, se constitui numa ínfima minoria a parte dos portugueses que pode deslocar-se ao concelho (e não me enganei na circunscrição administrativo-geográfica) que absorve 63% do bolo monetário reservado à cultura – é aí que quase tudo acontece –, criando os necessários hábitos de consumo dos bens e das manifestações culturais; a segunda manifesta-se na falta de edição (sob que forma for) de marcos referenciais da cultura universal, por cedência ao imediatismo do espectáculo pirotécnico de um pequeno conjunto de baboseiras de valor acrescentado nulo, ou melhor, de depreciação progressiva de alguma intelectualidade residual que ainda subjaz findo o período ontogenético.
Todavia, mesmo considerando todas as dificuldades acima referidas, celebremos o pouco do muito que poderia ser feito. Finalmente, iremos ter as deambulações do mancuniano em Londres, Johnny (a grande interpretação do actor britânico, nascido em 1963, David Thewlis) e as suas asserções existencialistas derramadas nos escombros da degradação da sociedade ocidental contemporânea. Um filme para ver e rever, e a ele voltar regularmente.
Por último, o peixe-gato lascivo já tem distribuição garantida em Portugal. As tais cabriolas ronronantes aquáticas que fazem parte do filme vencedor da Palma de Ouro da edição deste ano do Festival de Cannes, anunciado aqui, e que se apresenta sob o título O Tio Boonme que se Lembra das Suas Vidas Anteriores, realizado pelo tailandês Apichatpong Weerasethakul*. Entretanto, fica o aviso para as senhoras (e não só) mais sensíveis a este tipo fauniano de frenesim interclassista: cuidado com as imitações e deixem de lado o espadarte por este poder vir a revelar-se como uma experiência potencialmente mais pungente. E isto, apesar da premência de novas formas de alcançar receitas turísticas para a Madeira – por favor, deixem, neste aspecto, a caridade de lado (ainda que me assemelhe a um bronze que soa ou a um címbalo que retine**…)
Notas:
* saúde-se a Midas Filmes por haver permitido, através da sua actuação enquanto agente de cultura, a comunicação destas duas novidades.
** 1 Coríntios 13:1