sexta-feira, 8 de outubro de 2010

O Escravo, por Llosa

Com a descrição da aculturação forçada e o desbaste culpável e criminoso da personalidade intrínseca ao ser humano, desde que este solta o primeiro gemido neste mundo, o Nobel peruano dá início à sua carreira literária na narrativa longa de ficção, com o excepcional romance de 1962 La ciudad y los perros (A Cidade e os Cães). Uma vertiginosa alegoria. Los perros para Mario Vargas Llosa, são os cadetes internados no Colégio Militar Leoncio Prado na cidade de Lima, um microcosmos das práticas torcionárias durante o apogeu dos movimentos repressivos e a expansão dos seus ideais nas trevas da Guerra Fria, que, em nome de uma ideologia, coarctaram toda a sensibilidade em nome de um colectivo amorfo e obediente perante um directório cujos interesses se subsumem ao poder e ao seu exercício indiscriminado e cruel.
O Escravo que refiro no título do texto, é a alcunha do infeliz Ricardo Arana – talvez o personagem mais marcante e pungente de todo o memorável romance (já o li há anos e continua a marcar o meu pensamento, e quiçá parte do meu comportamento) –, o representante de uma minoria, mesmo entre os “perros” (ou os “cães”), que se vai autodestruindo pelo consentimento de aniquilação da sua vontade perante o poder dos outros, pela submissão dos seus sentimentos que enformam a sua personalidade.
Eis um trecho inesquecível deste romance, onde se retrata O Escravo e a sua sede de liberdade que pode assumir-se numa miríade de maneiras, tantas quantas as formas de pensar, sentir e agir de cada indivíduo – esta é uma alegoria de um mundo de repressão:
«Podia suportar a solidão e as humilhações que conhecia desde menino e que só feriam o seu espírito: o horrível era estar fechado, essa grande solidão exterior que não escolhera, que alguém lhe atirara para cima, como uma camisa-de-forças. Estava em frente ao quarto do tenente, no entanto, não levantava a mão para tocar. Sabia, contudo, que ia fazê-lo, tinha demorado três semanas a decidir-se, já não tinha medo, nem angústia. Era a sua mão que o atraiçoava: permanecia quieta, fraca, pegada às calças, morta. Não era a primeira vez. No Colegio Salesiano chamavam-lhe “boneca”: era tímido e tudo o assustava. “Chora, chora, boneca”, gritavam os seus companheiros no recreio, rodeando-o. Ele retrocedia até que as suas costas encontravam a parede. As caras aproximavam-se, as vozes eram mais altas, as bocas dos meninos pareciam focinhos dispostos a ferrá-lo. Punha-se a chorar. Um dia disse para si: “Tenho de fazer qualquer coisa.” Em plena aula desafiou o mais valente do ano: esquecera o seu nome e cara, os seus punhos certeiros e o seu ofegar. Quando se viu frente a ele, no canto da lixeira, encerrado dentro de um círculo de espectadores ansiosos, também não sentiu medo, nem sequer excitação: apenas um abatimento total. O corpo não respondia, nem se esquivava aos golpes; esperou que o outro se cansasse de lhe bater. Era para dar castigo a esse corpo cobarde e transformá-lo que se havia esforçado para entrar no Leoncio Prado: por isso tinha suportado esses vinte quatro largos meses. Agora já não tinha esperança; nunca seria como o Jaguar, que se impunha pela violência, nem sequer como Alberto, que podia desdobrar-se e dissimular para que os outros não fizessem dele uma vítima. A ele conheciam-no logo, tal como era, sem defesas, débil, um escravo. Só a liberdade lhe interessava agora para manejar a sua solidão à vontade, levá-la a um cinema, encerrar-se com ela em qualquer parte. Levantou a mão e bateu três vezes à porta.»
Mário Vargas Llosa, A Cidade e os Cães, pág. 106. [Mem Martins: Europa-América, 1988, 302 pp; tradução de José Eduardo Mendonça; obra original: La ciudad y los perros, 1962.]
Decorridas mais de doze horas após o anúncio, ainda persiste na minha mente um forte sentimento de exultação e de comprazimento: hoje, a Academia Nobel fez finalmente justiça. Será para manter? No início do próximo Outono veremos se o lixo ideológico de outros anos foi definitivamente expurgado daquelas mentes e reciclado em substância exclusivamente literária. Saiu-se do círculo de uma intelligentsia deslumbrada pelo exercício sedutor do poder, mesmo que arbitrário, iníquo e criminoso. Conceder o Nobel a Llosa foi uma forma de homenagear os oprimidos por Trujillo ou por Castro, à direita ou à esquerda, os filhos esmagados pelo peso dos ditadores deste mundo. O anúncio da Academia Sueca hoje de manhã sancionou esse grito de liberdade, antes que fosse tarde de mais. Llosa tem 74 anos e continua jovem e enérgico a escrever sem rodeios através da «sua cartografia das estruturas de poder e imagens incisivas da resistência, da rebelião e da derrota do indivíduo.»